domingo, 18 de janeiro de 2009

Tempos Ruins - Fragmento


Estes são tempos ruins. Não, não foi erro ortográfico. Escrevi esTes mesmo. Afinal, todos sabemos em que tempos nos encontramos, não? Pensei em preencher o tempo escrevendo um romance existencialista, pleno de meus questionamentos acerca de tudo que nos cerca nessa vida tragicômica. Pestanejei por alguns instantes e minha grande idéia em forma de prosa romancista desapareceu assim como veio. Ainda assim, eis-me aqui dedilhando algumas linhas. A retórica poética cansou de mim, arrisco-me em um ensaio, versos ruins não vão bem com um final de domingo em que a promessa de chuva não se cumpriu. Pensar a respeito da própria vida e da relação desta com outras próprias vidas não é lá um ofício muito nobre, principalmente para um iniciante nessa arte. Afinal, o que sabemos aos 27 anos? Praticamente nada. Ou serei exceção? Creio que não.
De qualquer forma, gosto de arriscar, aqui vou eu – típica frase de quem está prestes a enrascar-se.
Como buscar o significado da própria existência? Excluam-se aqui os seguintes óbvios, a saber: religião, filhos, analistas, ou outra forma pseudo-auto-explicativa qualquer que se apresente. A vida por ela mesma, em seu banal cotidiano entre o dia e a noite, entre o passado e o futuro (parodiando Hannah Arendt), enfim, no inefável presente. O agora, mesmo aos mais planejados e provavelmente bem-sucedidos financeiramente, é tão pleno de vetores ocasionais que qualquer predição é anedotária. Apesar de estarmos inseridos em determinado local, cultura (e hoje é tudo tão semelhante) e espaço, ainda somos donos dos nossos narizes. Ou não? Caso neste momento eu decida interromper a escrita, descer os andares de meu prédio que me separam do solo e correr até a avenida mais próxima cantando La Traviatta nada me impedirá. Nada? Quais seriam as conseqüências disto – além do indizível desprazer de meus vizinhos? O que me impede de cometer semelhante ato é o que virá em seguida, as conseqüências de minha cantoria. Como explicar que um pós-graduando da melhor universidade da América Latina decidiu correr e cantar rua afora, em pleno uso de suas faculdades mentais? Ora, o que virá depois me impede. O futuro, o ainda não ocorrido pré-determina o que farei nas próximas horas. Mas o nariz não era meu? Ou era nosso?
A pré-determinação da cultura ocidental, ou melhor, de qualquer cultura, atribui signos e significados tanto para os objetos como para as ações humanas. Em um relato antropológico, um cientista conta que o feiticeiro de determinada tribo havia deslocado-se através de um trovão, fato plenamente aceitável para aquela sociedade. O real acontecimento físico que provocou o desaparecimento anterior do feiticeiro por três dias (tentar reintegrar-se à sua antiga tribo mais poderosa que a atual) não importa em tal contexto. Viajar de trovão lá é decididamente possível. Tribos selvagens são peculiares não? Para nós ocidentais, viajar de trovão é um tanto difícil. Agora, buscar a explicação de por que estamos no mundo, fechados entre quatro paredes através da catarse para um estranho é certamente muito aceitável – digno aliás de um cérebro racional e privilegiado. Afinal, quem não faz análise nestes dias? Estabelecemos os signos ocidentais e os espalhamos pelo mundo propagandeando sua efetividade e sua lógica perfeitamente explicável, como 2 e 2 são quatro. Pero somos pessoas. Em nosso caso 2 e 2 podem ser 3, 5, 7 ou nada, depende da existência, imaginação ou acaso de cada um.
Meu digníssimo perdão aos senhores teóricos postulares do Sr. Freud e seus seguidores, ou ainda de tantos outros pesquisadores de nossa existência que o seguiram ao longo do século XX. Se, de alguma forma, há conforto nas quatro privilegiadas paredes dos consultórios de análise, certamente é porque este já encontrava-se dentro do analisando. Aqui é necessário pagar para descobrir isto, ok.
Menciono os socialmente legitimados, cobertos pelas teorias científicas. Há outros charlatães por aí com menor classe e um tanto indelicados, encobertos entre terços e águas bentas. Mas deixemos tais argumentos de lado, ainda estou esperando a chuva que foi prometida para hoje e, até provem o contrário, ela ainda cai do céu.
Creio que as idéias deste ensaio estejam um tanto confusas, qualquer semelhança às nossas vidas não é mera coincidência, portanto, simplifiquemos. Ao conseguirmos atribuir significados concretos às nossas ações, ao possibilitarmos o direcionamento de nossa existência para um plano místico ou o reverso da moeda, racionalista, conseguimos seguir com nossas vidas. Mesmo que sejamos uma molécula de migalha no espaço sideral que possui ego, mesmo sem conseguir entender a transcendência de nossas moléculas organizadas em um sistema vivo que desorganiza-se depois de morto. Morto? Nossas moléculas não desaparecem, dividem-se apenas. E desorganizam-se aos nossos olhos, é claro. Determinamos a existência à capacidade única e humana de pensar e, de alguma forma, expressar tais pensamentos. Um quadro, um poema, um soco, um sorriso – todas ações humanas e produzidas através do pensamento. As mesmas moléculas que organizam-se hoje e formam os lábios de seu sorriso em alguns anos (ou antes disso) serão varridas do chão na forma de poeira. Impossível conviver com isso, com essa única e irredutível verdade. Por isso a driblamos mística ou racionalmente.
É preciso aproveitar cada momento, seu tempo está acabando. E o que é afinal, aproveitar o momento? Buscamos indefinidamente a resposta de por que estamos aqui inclusive gastando boa parte do precioso e esgotável tempo nisso. Inclusive há os escrevem atrás de tal resposta. Não nos foquemos nestes. A existência, como afirmei anteriormente, é plena de vetores ocasionais, mas, paradoxalmente, nossas ações frente a tais acontecimentos são pré-ditas pela cultura na qual estamos inseridos. Sejamos índios caigangue ou executivos vestindo Armani, há pré-determinações das quais não partejamos a construção ou seu estabelecimento – aliás, quem fez isto? Tais construções são a soma de tantas existências e acasos que torna-se humanamente impossível determinar seu estabelecimento inicial. É possível organizar fatos em ordem cronológica para facilitar nosso parco entendimento acerca de determinado assunto, mas é impossível determinar a construção exata dos comportamentos socialmente aceitáveis. Justamente por serem um soma de existências, e não 2 + 2. E, nesta soma de existências que predirão o que farão nossos descendentes, nos encontramos. A questão é se desejamos que eles possam cantar La Traviatta em altos brados ou se acreditamos que o analista está certo. Nesse caso, poderemos acrescentar sessões intra-uterinas nos acompanhamentos de pré-natal – já existe algo semelhante.
Obviamente cantar La Traviatta sem medo é um objetivo despropositado, exemplifiquemos com algo mais importante – não desfazendo a importância de minha canção.
O mundo divide-se entre a esfera pública e a privada. A esfera privada permite comportamentos que certamente seriam censurados na pública. Nos deteremos então, na mais complexa, na qual partilhamos pré-momentos – a pública. Nela possuímos a segurança social das pré-determinações, que asseguram como serão as próximas horas distantes da segurança privativa do lar – necessária em nossa sociedade. É possível na vivência pública estar inserido condizentemente com o contexto social e proporcionar mudanças na soma de existências da pré-dição a qual afirmamos anteriormente? Certamente.
Conforme andamos a vida na esfera pública, através de pequenos radicalismos, micro-influências, pequenas rupturas, obteremos ressonância nas próximas existências que nos seguirão. É possível de maneira mais escancarada observar tais rupturas nos movimentos artísticos ao longo da história universal. Desde as pinturas rupestres à Gioconda de Da Vinci, suas ressonâncias são como gritos às existências posteriores. Felizmente poucos possuímos a capacidade de gritar de tal forma, seria difícil comunicar-se em meio a tanto barulho. Aos que não gritam, a própria existência cotidiana é faca, com duas navalhas naturalmente. É possível exercitar a existência sem percebê-la criticamente, através principalmente hoje da busca incessante pelo consumo, ou, criar as suas rupturas individuais. Infelizmente o resultado da soma de tais rupturas serão vivenciadas pelos filhos de nossos filhos, enquanto nossas moléculas estarão sendo varridas da calçada. As mesmas moléculas que juntas e organizadas em forma de boca já esboçaram um sorriso.

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