quarta-feira, 3 de setembro de 2008

Nossos Minutos



Buscando auxílio no pensamento antropológico, principalmente a partir de Heidegger e de seu conceito de fusão de horizontes, é possível avaliar o que significa quando um encontro humano ocorre, sob várias óticas e prismas de análise. Utilizo aqui a expressão encontro humano no sentido de o mesmo ser único, cronológico e situado no espaço, sendo assim impossível de repetição. Encontro este que pode ser de duas ou mais pessoas, não importa, o que importa é sua unicidade na história da existência de todos. Heidegger conceituou o que chamou de fusão de horizontes ao instante em que o olhar cultural de um ser, somado ao olhar de outro, produz um novo olhar, compartilhado por ambos. Fusão de existências.
Contrariando a perspectiva biologicista que considera o homem um punhado de genes e hormônios circulantes em estradas venosas e arteriais, afirmo: possuímos história, escrevemos a cada minuto nossa biografia, perpassamos a mesma pelo encontro com outros e com a fusão de todos em obrigatória convivência social. Obrigatória sim, pois mesmo aos que se isolam voluntariamente desta, apenas a ação de isolar-se já é uma relação com os outros – é preciso de isolar-se de algo, o outro sempre existe. Acreditarmos que a existência é regida por predisposições genéticas, passíveis de controle e manipulação, sugere-nos o homem maquínico, pleno de parafusos e arruelas genéticas. Coloquemos isso à prova da arte e, certamente, refutaremos tais tacanhas disposições científicas. Aqui não nega-se a importância das pesquisas genéticas e do crescente conhecimento na área, o que nega-se é o extremo, é o desconsiderar a existência do humano, de sua unicidade, de sua singular existência e incapacitá-lo em relação à protagonização da própria história. Se eu, poeta, escolho escrever determinados versos, certamente eles não estão previamente inscritos em meus genes, fazem parte sim de minha história e de minha relação com outros entes humanos. Negue-se isto e estaremos negando a própria existência.
Dentro da perspectiva freudiana, o impulso da vida é a energia libidinal. A repressão da mesma e o aprendizado provindo deste exercício nos constitui enquanto seres sociais. Como toda construção humana, a sexualidade é uma construção histórica, social, cultural, biológica e psicológica. De acordo com o ethos de cada momento histórico a sexualidade é exercida e vivenciada de determinada maneira. A constante a ser considerada neste aspecto é a de que o impulso libidinal perpassa toda a existência humana, variando sim seus mecanismos repressores e sua simbolização antropológica. Portanto, a maneira que vivenciamos nossa sexualidade, a forma como a inscrevemos em nossa biografia, é prenhe de outras tantas existências humanas das sociedades que nos precederam e das quais nos inserimos enquanto homens. Acredito que aqui é necessário uma inflexão sobre a própria noção de protagonistas de nossa biografia: se estamos inseridos em determinado tempo, em determinado espaço e convivemos em determinada sociedade, até que ponto realmente protagonizamos nosso cotidiano? Até que ponto realmente escolhemos determinado parceiro para as trocas afetivas? Conseguimos verdadeiramente encontrarmo-nos com o outro, que também encontra-se inserido e submerso neste mesmo espaço, tempo e sociedade? Não há uma simbolização pré-determinada de bem estar, de beleza, uma estereotipização prévia da relação ideal, com a qual alcançaremos a felicidade plena? Permanecem os questionamentos e seguimos com nosso texto protagonista.
Contrariamente ao propagandeado pelo pós-modernismo barato, este que se mostra impensado e que nos cerca dentro do senso comum, não refletindo verdadeiramente sobre si, apenas desvelando novas verdades, penso que nunca possuímos tanto tempo para olharmos para a própria existência quanto hoje. O discurso de que o mundo contemporâneo não permite a inflexão sobre si é, no mínimo, uma negação do próprio momento histórico que vivenciamos enquanto sociedade. Analisemos a jornada de trabalho pós-moderna, drasticamente reduzida em número de horas se comparada às jornadas dos trabalhadores rurais ou industriais do começo do século XX. Agora trabalhamos em casa, enquanto dirigimos através dos telefones móveis, não há mais jornada pré-estabelecida. Os cartões ponto caem em desuso nas profissões pós-modernas. Pensa-se menos em quantidade de horas dispostas ao trabalho e mais em qualidade de realização do mesmo. Apesar da aparente roda viva do dia-a-dia pós-moderno, a angústia em relação à própria existência aparentemente cresce, haja visto o pleno desenvolvimento da farmacologia psíquica e a proliferação dos consultórios psicanalíticos. O que há com a pós-modernidade que nos causa tanto sofrimento? Seria o encontro consigo ao qual estamos submetidos pelo isolamento da imagem de seres sociais ideais, com determinado corpo, roupa, estilo de cabelo ou mesmo de vida? O próprio exercício do erotismo, a que “previedades” o mesmo está submetido pelos padrões pós-modernos de existência? Não proponho aqui um romântico e idealizado retorno ao passado, solução fácil e inócua para encerrar esta breve reflexão. A proposta aqui é a própria volatilidade das questões neste ensaio inseridas, a necessidade de colocá-las enquanto crítica e revisão da praxis diária. Proponho aqui a revisão da necessidade humana do encontro com o outro, com a existência de outros entes humanos, com o sexo alheio e suas contradições (aos nossos estreitos olhos), com a capacidade da abertura aos outros que nos cercam. E este não é um discurso puritanista, moralmente estéril de igualdade entre os seres. Este é o exercício da sexualidade propriamente dita, de nossa energia libidinal, de nosso pulso de vida. Do comum à todos, pós-modernamente reprimido nos comportamentos contemporâneos do ficar à esmo, das relações fugazes, da máscara de felicidade que precisamos assumir perante outros igualmente angustiados e solitários, mas que precisam guardar isso para si, assim como nós mesmos. Afinal, quem sofre hoje em dia, não é mesmo? Os doentes talvez. Pobre perspectiva biomédica de considerar apenas o patológico, o canceroso, o desfuncionante. Ora, ser homem é questionar a própria existência sim, e a manifestação da angústia é parte deste questionamento, mesmo que pós-modernamente neguemos que isso ocorra.
Para os biologicistas, a solução não é Heideggeriana, a fusão de horizontes (aqui adaptada para este ensaio) está já condensada farmacologicamente. Não há porque perdermos tempo com isto. Encontrar o outro só se for para uma ficada. E que seja rápida e não me ligue no outro dia, ok? Já tomou seu Prozac© hoje? Não, mas já liguei para o meu analista.

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